Esta é a última parte de uma série de três posts.
Após conversar com o Kiosk sobre o Irã e a vida no exterior, o final da nossa série tinha que ser, claro, sobre música.

We are not sure wich instrument is played by the younger one... / Photo: Band Archives
Não estamos certos sobre qual instrumento toca o mais jovem ali… / Photo: Band Archives

Música

Invasões Bárbaras – Embora a ideia principal seja abrir horizontes e fazer música ocidental no Irã, é visível a influência da origem de vocês no trabalho. A antiga música tradicional persa chega a ser um peso ou é algo que faz parte?
Arash Sobhani: Não que façamos força para “soar persa” ou algo do tipo, nosso processo de composição é tão ocidental quanto o de qualquer outra banda do mundo, mas de vez em quando algumas melodias e elementos que são muito tradicionais da região e que surgem naturalmente, até inconscientemente, e quando isso acontece eu acho que acrescenta muito a nosso som.
IB – Ouvir os álbuns do Kiosk nos trazem à mente Bob Dylan, Leonard Cohen, Tom Waits e Dire Straits como referências. É o que vocês ouviam no Irã pré-revolução? O que os impressionava mais na diferença entre a música ocidental e o pop persa: as letras, melodias, ritmo, instrumentos…?
Arash: Eu comecei tocado pelo som do Dire Straits, sou grande fã, e foi o trabalho deles que me levou a querer tocar guitarra. Mas ter sido apresentado à música de Dylan foi como descobrir todo um novo universo, o poder das letras carregadas com temas sociais se transformou num instrumento poderoso que vai além da música.
IB – A parceria com Ahmad Kiarostami gerou clipes interessantes. Dizem que “Eshgh e Sorat” é a música iraniana mais vista no YouTube. Como vocês enxergam o potencial das imagens como complemento do som?

Arash: O vídeo é muito poderoso, mas nem sei dizer se (Eshgh e Sorat) é mesmo “o mais visto”, mas certamente está entre os primeiros. O YouTube nos ajudou muito – como banda independente – a levar nossa música às pessoas. Também tivemos a sorte de estarmos cercados de amigos talentosos que nos ajudam com estes vídeos incríveis (porém baratos), por isso pudemos ter tantos vídeos bons!
IB – Vocês se envolvem nesse processo de criação? Se for o caso, vocês poderiam falar um pouco de como “Saz Nemishe Zad” foi feito?
Ardalan Payvar: Muitos de nossos vídeos surgiram em sessões de brainstorm entre os membros da banda e o artista, mais algumas garrafas de Scotch, mas às vezes o diretor cria inteiramente o clipe sem nossa participação, como em “Keramat”.
No caso de “Saz Nemisheh Zad”, nosso grande amigo Afshean Hessam, que fez vários de nossos clipes, foi o diretor. Tínhamos algumas ideias na cabeça, mas depois de alguns testes nós vimos que não estavam funcionando, foi quando Afshean veio com sua ideia.
Como a letra fala sobre a proibição de fazer música, essa foi a razão de travar os movimentos dos músicos. Eles tentam se mover, mas estão presos num loop eterno até que a letra lembre que “vamos fazer nossa música de alguma maneira” e é quando todos se libertam.

IB – O disco ao vivo de 2010 – Triple Distilled – foi gravado no Yoshi’s, em San Francisco, um clássico reduto do jazz. É importante e simbólico que uma banda underground iraniana toque em um palco sagrado da música americana, onde tantos grandes nomes se apresentaram. No Brasil, quando alguém toca no Carnegie Hall é um orgulho para a classe artística, e os jornais sempre fazem um registro solene. Como foi ter a chance de tocar em um lugar tão importante? E o fato repercutiu no Irã?
Arash: Infelizmente, pouca gente no Irã estava familiarizado com o significado da casa, mas ficamos muito felizes e realmente honrados de poder gravar em um lugar tão icônico.
IB – Call a Cab: Na faixa de abertura, “Saz Nemishe Zad”, vocês fizeram um tributo a JJ Cale. Vocês o conheceram ou tocaram juntos? Embora por razões diferentes, vocês e ele acabaram forçosamente se tornando outsiders. Vocês se indentificam com essa postura?
Arash: Infelizmente, nunca conhecemos JJ Cale pessoalmente. Sou um grande fã de longa data, amo seu som elaborado e simples ao mesmo tempo. Ele é uma lenda, e regravamos uma de suas canções, “strange days”, que é uma grande música.

 / Photo: Eyené
Infuenciados pela música ociendal, persas na mente e no coração / Foto: Eyené

IB – Deixando as letras de lado, por uma dificuldade nossa com a língua, percebemos Call a Cab em uma direção ligeiramente diferente dos outros álbuns em pelo menos um aspecto: as canções parecem declamadas de forma mais falada, como Leonard Cohen faz, por exemplo. Foi algo pensado? Uma escolha feita por imposição da letra? Ou: estamos errados?
Arash: Acho muito parecido com o primeiro álbum, que tem versos longos e tenta trazer diálogos cotidianos para nossas letras. Por isso, acabamos quebrando um pouco a estrutura, não dava pra ficar preso à melodia, então sim, em muitos momentos soa como uma conversa sobre uma base musical, um resultado que gostamos.
IB – Assistindo ao documentário “Kiosk – A Generation destroyed by madness”, me lembrei de dois sentimentos frequentemente associados à música: liberdade e pertencimento. Que papel a música desempenha para alguém que se sente estrangeiro, mas sem um lugar para voltar?
Arash: Essa é uma questão bem interessante, para qual tenho buscado resposta ouvindo muita música Klezmer, muita música cigana, crioula, de outros imigrantes e gente sem pátria. É estranho como algo comum em todas elas é um balanço equilibrado entre alegria e tristeza na mesma canção, como uma repentina trovoada em um dia bonito de primavera que simplesmente some muito depressa!
/ Photo: Masoud Harati
Kiosk em ação / Foto: Masoud Harati

IB – O Brasil passou por um período turbulento de 1964 a 1985 (uma ditadura militar), quando artistas foram exilados ou tiveram que deixar o país por serem tidos como subversivos. Temos uma palavra em português, “saudade”, da qual temos orgulho de dizer que só existe em nossa língua. Ela descreve um sentimento de nostalgia, uma sensação de falta ou perda, que foi o tema de muito da música brasileira produzida por artistas exilados. O quanto de “saudade” vocês sentem do Irã?
Arash: Engraçado você perguntar, porque esbarrei com o termo “Saudade” a partir de uma música de Chris Rea dedicada ao (Ayrton) Senna. Fui procurar o que ela queria dizer e o significado me tocou! Que palavra incrível, para mim ela é tão familiar como se fosse persa! A maneira como nos sentimos sobre o Irã é extremamente apaixonada, extremamente melancólica, nostálgica, algo que não conseguimos descrever em palavras, como “Saudade”.
IB – No documentário também vimos Arash Sobhani tocando “Bossa Nova”. Até onde vai o interesse musical sobre o Brasil? Há alguma influência no som da banda? Chances de algum tributo ao país em um próximo álbum?
Arash: Sou um grande fã de Bossa Nova, houve uma grande onda do pop iraniano pré-anos 70 que foi muito influenciada por ela. Varouzhan foi um compositor que incorporou elementos do estilo em seu trabalho antes da revolução no país, e suas canções eram tão queridas por iranianos quanto as de Jobim no Brasil.
Sou grande fã de Tom, Gilberto, e todos os outros grandes nomes! É uma música fantástica que eu canto secretamente quando não há ninguém por perto para debochar do meu português…
IB – Fazemos um pedido: Por favor, não se acanhe em tentar 😉
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“Uma palavra incrível, tão familiar para mim como se fosse persa”. Arash, sobre “Saudade”

 
Essa foi a última parte da nossa entrevista. Você pode ler a primeira parte aqui e a segunda parte aqui.
Também resenhamos o álbum “Call a Cab” em nosso programa de rádio. Ouça aqui.
E “Call a Cab” também figurou no nosso Top Melhores Álbums de 2014.