A Bastilha caiu há 225 anos, no mais famoso dos 14 de julho, aquele que se deu em 1789. De lá para cá são incontáveis as páginas escritas sobre a Revolução Francesa e seu significado na história do país, dos ideais republicanos e dos direitos humanos. A data virou o mais importante feriado francês, o dia da Festa da Federação, e reforçou a transformação de uma canção revolucionária chamada “Canto de Guerra para o Exército do Reno” em hino nacional.
A Marselhesa, como se tornou conhecida depois, foi composta por Rouget de Lisle, um oficial francês, sob encomenda do prefeito de Estrasburgo. Inspirada em slogans patrióticos e tendo a guerra como motivo, criou-se uma associação com a cidade de Marselha, de quem herdou o nome, e daí espalhou-se por toda a França.
Há 35 anos, também num 14 de julho, Serge Gainsbourg deu ao mundo a sua Marselhesa, numa versão que muito bem se inscreve na sua faceta “polemista”. Ouça e compare as duas enquanto seguimos contextualizando.
Motivos para uma versão
A Marselhesa é um hino e, como todo hino, é a expressão do orgulho nacional. Reagir contra o belicismo da canção é um tema que agita a França desde Victor Hugo. Existe, inclusive, a proposta da associação “La Nouvelle Marseillaise” para uma nova letra que não convoque os cidadãos às armas (Aux armes, citoyens), que não fale em banhar o solo francês com sangue impuro (Qu’un sang impur abreuve nos sillons!) e que não use a imagem de mulheres e crianças degoladas (Égorger vos fils, vos compagnes!).
Em 1979, além de não conviver bem com o vício em álcool, Gainsbourg passava por uma fase complicada na carreira. Devia estar de saco cheio da patrulha do moralismo francês e resolveu contra-atacar se valendo de um dos mais importantes símbolos da república.
Sua versão corta as partes consideradas menos importantes e canta as primeiras palavras do refrão seguidas por et caetera, sublinhando o blá-blá-blá sem sentido de repetir essas palavras em 1979. O mais impressionante não é a maneira como ele lida com a letra em si, mas o deslocamento que promove de Paris e toda a sua solenidade para a Jamaica de Bob Marley. É no reggae que ele encontra a chave da ressignificação. Sai Paris, capital da degola, entra Kingston, capital legalize da paz.
Gainsbourg enfrentou as alas mais radicais do nacionalismo francês com a inteligência e a ironia de sempre. Cantou a Marselhesa original com o punho cerrado, frente à obediência patética de quem não havia entendido coisa alguma. Mandou uma banana para a plateia e se foi.
Justificou sua gravação com a maneira como a Larousse apresentava a letra da Marselhesa, com etc nas repetições do refrão. No final do vídeo acima é possível vê-lo, anos depois, comprando por 135 mil francos uma cópia do manuscrito de Rouget de Lisle, onde também aparece o etc. Como ele dizia, a intenção era apenas recuperar o sentido original da Marselhesa.
Motivos para uma polêmica
Gainsbourg parecia viver para esticar a linha dos limites. Ao grande talento se somavam, com igual força, um lado sedutor e um lado polemista, e são muitos os capítulos de sua biografia que poderiam ilustrar esses pontos.
Brigitte Bardot e Jane Birkin, para ficar só em duas de suas conquistas, atestam seu poder de sedução, construído com charme, sensibilidade e inteligência. Dez anos antes de sua versão do hino francês houve Je t’aime… moi non plus, a mais sexual (e honesta) canção de amor. Em 1984 lançou Lemon Incest, dueto filmado em uma cama com sua filha pequena, Charlotte Gainsbourg – hoje musa do cineasta Lars von Trier.
Músico consagrado, arriscou seus passos na pintura, na poesia e no cinema, sempre colocando o dedo na ferida. Você vê um panorama da carreira de Gainsbourg no belo filme de Joann Sfar “Gainsbourg – Vie héroïque” (no Brasil: “Gainsbourg – O homem que amava as mulheres”). A nota triste fica por conta do suicídio da atriz Lucy Gordon, que interpretou Jane Birkin, enquanto o filme estava em fase de montagem.
Mirian Silveira
»Adorei a história. A desobediência e a quebra de protocolo tem por si só uma beleza.